Teses sobre homicídio (Parte 1)

Por André Peixoto de Souza

O desfecho do filme Estômago mostra o crime cometido por Raimundo Nonato: matou sua noiva e seu chefe. Íria, uma prostituta que inicia o namoro em troca da boa comida feita por Raimundo, possui uma única regra no ofício: não beijar na boca. Giovanni, chef de renome, dono de importante restaurante, contrata Raimundo porque percebe o seu dom e o seu potencial. Mas o triângulo é aperfeiçoado quando Giovanni encontra Íria, e os dois são por Raimundo flagrados no restaurante: comida, sexo e… beijo na boca!

Os fatores preponderantes do homicídio privilegiado, cujo “privilégio” se justifica na diminuição da pena, são, alternativamente: o relevante valor social, o relevante valor moral e o domínio de violenta emoção em resposta a atual e injusta provocação da vítima.

No homicídio passional é comum entender que a traição, principalmente no contexto sexual – mais que no amoroso ou sentimental – revela com precisão a ideia de “injusta provocação da vítima”. Ao trair a confiança do parceiro, o traidor (vítima) se dirige ao traído (algoz) de maneira provocativa e injusta: é provocativo (desafiador, ultrajante, ofensivo, abusivo) estar com outro, o verdadeiro “inferno” de Sartre; é injusto romper a equidade do casal originário (o outro acresce o peso do prato da balança do traidor).

A “atualidade” da resposta (homicídio) delimita e distingue o privilégio da premeditação ou da vingança. Se a resposta não ocorre no imediato instante em que o algoz é provocado, retira-se-lhe o privilégio, e provavelmente estaremos diante de um homicídio qualificado.

Mas a maior problemática para o homicídio privilegiado está no elemento dolo. Ora, é o dolo, no homicídio, a intenção de matar, a figura volitiva que desencadeia um comportamento criminoso (matar). A questão que merece ser colocada é a seguinte: se o privilégio na violenta emoção é caracterizado pela ausência de planejamento, de premeditação, de vingança, porquanto preenchido pela instantaneidade da resposta à injusta provocação, e – mais ainda – se a violenta emoção, em resposta a tal provocação, configura um pequeníssimo (e intensíssimo) momento de perda completa das razões, das faculdades cognitivas, das calculabilidades, capaz de retirar por completo qualquer intenção do algoz (tanto positiva: o perdão ou a indiferença, quanto negativa: o homicídio), como pretender ser o homicídio privilegiado por domínio de violenta emoção em resposta a atual e injusta provocação da vítima um homicídio doloso? (pois, desprovido de intenção e tomado pelo momento de uma cena atordoante, o traído/algoz meramente e instintivamente reage a uma ação atual, injusta e provocativa do traidor/vítima).

O flagrante de traição sexual (repito, não amorosa ou sentimental, mas apenas material, carnal, luxuriosa) remete o traído a um conjunto de sensações que, misturadas, são como um caldo frio de legumes sem tempero em que é difícil distinguir os ingredientes utilizados. Como dito: atordoamento, desespero, ira, torpor, cólera… que necessitam escoar por um ralo invisível da alma, muitas vezes temperado (ou temperável) apenas com… sangue!

Se entre traído e traidor existe sincero e verdadeiro sentimento de amor, ou mesmo de paixão, a cena flagrante e real da traição se torna insuportável. Pode representar a pior cena, o pior momento, o instante macabro da existência humana. Não se trata de pertencimento do corpo, aspecto egoísta que não merece qualquer “privilégio”, mas do compartilhamento daquele tal instante com outro que não pertence à relação sentimental de amor sincero e verdadeiro que emana do traído, e que, por isso, é reprovável tanto quanto a morte do traidor.

Porque o estado psicológico do traído, diante da cena maior (material ou luxuriosa) da traição, por mais que seja pessoa de bem, é desprovido – naquele instante – de qualquer cerceamento ético, de interdição, de justiça, de inteligência ou mesmo de vontade. O agente, pois, não é um criminoso, no sentido histórico do termo. O traído não quis – nunca quis – matar! E diante das circunstâncias, sua conduta era inevitável. Eis a tese: a depender do contexto completo, e não obstante o impedimento do art. 28, I do CP, contra a imputação de homicídio privilegiado por domínio de violenta emoção em resposta a atual e injusta provocação da vítima cabe absolvição ou, no mínimo, desclassificação para homicídio culposo.

Ao que tudo indica, sem que constasse o julgamento no roteiro de Estômago, Raimundo Nonato cumpriu reclusão em penitenciária: regime fechado! Não sabemos qual foi a imputação, a tipificação de sua conduta. É bem verdade que, após o homicídio, ele comeu as nádegas fritas de Íria, preparadas na cozinha do restaurante em que trabalhava. É evidente que esse fato dá ao contexto uma conotação macabra, psicopata, hedionda. Não podemos saber o que se passava na cabeça de Raimundo quando fritou em frigideira – com sal, pimenta e alecrim – as nádegas da traidora. Mas a sinopse preparada pelo diretor Marcos Jorge é elucidativa: “Na vida há os que devoram e os que são devorados. (…) Mesmo os cozinheiros têm direito a comer sua parte – e eles sabem, mais do que ninguém, qual é a parte melhor”.

Fonte: http://canalcienciascriminais.com.br/

 

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